O carmelita - inspiração para um apotecário

"Os Pozzo di San Patrizio eram uma família de pequena nobreza, que possuía a vasta propriedade rural de Griva, nos confins do território alexandrino [...]. O pai - que falava francês com a mulher, dialeto com os camponeses e italiano com os estrangeiros -, com Roberto comunicava-se de diversas maneiras, dependendo se lhe ensinava um golpe de espada, ou o levava a cavalgar pelos campos, blasfemando contra os pássaros que lhe estragavam a colheita.

De resto, o menino passava sem amigos, imaginando terras distantes, quando caminhava entediado pelos vinhedos; falcoaria, se caçava gaviões; combates com o dragão, se brincava com os cães; tesouros escondidos, enquanto explorava os cômodos do pequeno castelo da família, ou do grande castelo, como fosse o caso. Acendiam-lhe essas vagabundagens na mente os romances e os poemas cavalheirescos que encontrava empoeirados na torre sul.

Portanto, ineducado ele não era, e dispunha até mesmo de um preceptor, embora bissexto*. Um carmelita, que, segundo se afirmava, teria viajado pelo oriente, onde - murmurava sua mãe, fazendo o sinal-da-cruz -, insinuavam, se fizera muçulmano; uma vez ao ano chegava à propriedade com um criado e quatro mulas carregadas de livros e alfarrábios, e era hospedado por três meses. Não sei o que ensinava ao aluno, mas, quando chegou a Paris, Roberto fazia figura, e, em todo caso, aprendia rapidamente tudo o que fazia.

Desse carmelita sabe-se apenas uma coisa, e não é por coincidência que Roberto fale a tal respeito. Um dia o velho Pozzo cortara-se, limpando uma espada; ou porque arma estava enferrujada, ou porque lesou uma parte sensível da mão ou dos dedos, a ferida provocava-lhe fortes dores. Então, o carmelita pegara a espada, cobrira-a de um pó que guardava numa caixinha, e logo Pozzo jurava sentir alívio. O fato é que no dia seguinte a chaga estava cicatrizando.

O carmelita ficou satisfeito com o assombro de todos, e disse que o segredo daquela substância fora-lhe revelado por um árabe, e que se tratava de um medicamento bem mais poderoso do que aquele que os alquimistas cristãos denominavam unguentum armarium. Quando lhe perguntaram porque o pó não fora colocado na ferida, mas na lâmina que a produzira, respondera que assim opera a natureza, de cujas forças mais poderosas sobressai a simpatia universal*, que governa as ações à distância. E acrescentara que, se a coisa parecia difícil de acreditar, bastava pensar no imã, que é uma pedra que atrai para si a limalha do metal, ou nas grandes montanhas de ferro, que cobrem o norte do nosso planeta, as quais por sua vez atraem a bússola. E assim o unguento armário, aderindo solidamente à espada, atraía para si aquelas virtudes do ferro que a espada deixara na ferida e impediam sua cicatrização.

Qualquer criatura que na própria infância tenha testemunhado um fato semelhante não podia senão ficar marcada pelo resto da vida, e veremos logo como o destino de Roberto tinha sido decidido por sua atração pelo poder atrativo dos pós e unguentos".


(Umberto Eco - A  ilha do dia anterior)


* Bissexto - aquele que exerce um ofício ou atividade com pouca frequência, eventualmente.
** Simpatia universal - princípio alquímico segundo o qual os elementos da matéria mantém relação/ligação entre si mesmo à distância.