Comparativo dos larps I & II (2013-2014)


Passadas algumas semanas ou vários meses, os acontecimentos daqueles dias já são memórias e as mentiras que contamos sobre os larps que fazemos são tudo o que resta... incluindo as fotografias. Sim, elas também mentem. Mentimos, afinal, não podemos contar o que foram esses larps. Cada um viveu o seu. Só resta mentir.

As "belas mentiras" vão para uma nova seção do blog dedicada à ficção, em fase beta: um repositório para a narrativa de uma série de larps, diferente daquela de um romance ou de uma série de TV. Como gerí-la é um assunto pra depois.

Esse post discorre sobre os aspectos técnicos da construção de um jogo e de uma série assim; visa outros produtores por aí, em comunidades como a Larp Brasil e a Indie RPG, mas também o "povo de Akitan".

Nem todo mundo que jogou os larps de 2013 e 2014 está interessado em escrever jogos. Eles querem acampar, curtir a natureza, se vestir e comer como se fossem seus Personagens num mundo de fantasia. Mas ainda assim eles estão ajudando a construir um jogo, fazendo emergir o seu design

Nosso muito obrigado aos que tem suado a camisa por este projeto,
e
 aos que de longe tem se interessado e torcido.
U
m abraço a todos & longa vida a Akitan!

Goshai Daian
Produtor

Tópicos
  • Ficha técnica
  • Produção
  • Preparação
  • Os Larps
  • O Que Fazer Até o Próximo Larp?

Ficha técnica
Síntese para uma comparação rápida 

Inspirada no padrão do Nordic Larp. A notação dos Créditos reproduz a simbologia das equipes. O número de Participantes difere do total de Protagonistas, Coadjuvantes e Antagonistas porque alguns deles representaram mais de um Personagem durante os jogos. Movimentos Gerais listam ações que absorveram um grande contingente de Jogadores durante algum tempo do jogo, não necessariamente "mecânicas". Cenários indicam as locações caracterizadas. Props Especiais listam os objetos cênicos construídos ou adquiridos para o larp e que tiveram alguma importância no desenvolvimento do jogo.



Agradecimentos especiais: à sra. Regina e ao Sr. Juca, que gentilmente cederam seu sítio nestes dois últimos anos para a realização da atividade.


Produção
Equipes, agenda, orçamento, figurino, cenário, transporte, comida, pós-produção

O piloto começou a ser produzido em maio de 2012. Tínhamos o local à disposição. Alguns Jogadores foram recrutados para compor as equipes de produção. Por fatores diversos, apenas a Azul e a Verde/Marrom funcionaram bem, somente a primeira desenvolveu um "espírito de equipe". Os Jogadores confeccionaram individualmente seu próprio figurino e racharam à parte os gastos com a comida coletiva. Para completar houve sucessivos adiamentos da data do evento por causa da greve nas universidades públicas federais. E prejuízo financeiro: os custos reais da atividade eram (naturalmente) maiores que o esperado e muito acima da arrecadação (no fundo, tímida). O custo da inscrição cobriu apenas as espadas de ferro.

O larp deste ano teve cinco meses de produção. Entre dezembro de 2013 e março de 2012, os remanescentes da Azul trabalharam juntos, via skype e google docs, na revisão do Guia para as Fronteiras de Akitan. Até ali não sabíamos se haveria um novo larp este ano. Em abril, os playtests no Laboratório de Jogos e no ERPGV atraíram novos jogadores. Em maio começaram os preparativos. Os participantes definiram a data do larp, o quanto queriam pagar de inscrição e as prioridades de gastos para o orçamento do evento. O custo da inscrição cobriu todas as refeições coletivas, transporte e os materiais para caracterização do cenário, parte adquiridos pelos jogadores, parte pelos produtores.

Como no larp anterior, a parte material da produção durou menos de um mês, mas foi mais concentrada. Em 2013 a caracterização das locações ficou à cargo dos Coadjuvantes e Antagonistas (Verde-Marrom), investimos em cenário e o reconhecimento do terreno demandou várias incursões ao sítio. Este ano essa função ficou à cargo de um grupo de Protagonistas (Marrom-Amarela-Vermelha). Um dia antes do jogo, um grupo se reuniu e preparou o cenário do Acampamento; dois ou três dias antes,  fizeram os corres da comida; um pouco antes se reuniram para costurar as roupas juntos, discutir as regras e jantar.

Gustavo e Franklin montando a tenda do "Posto de Observação", março de 2013
"Totem de Ossos" dos selvagens das terras altas, março de 2013
Forno de cupinzeiro, por Willer Gomide, junho de 2014

O que podemos aprender com isso?
  • Os custos caíram porque já havíamos acumulado alguns props do larp anterior (espadas e algumas roupas, por exemplo), mas também porque definimos melhor nossas prioridades e não incluímos no orçamento do larp a caracterização dos Antagonistas;
  • O tempo de produção pode ser reduzido ainda mais a medida que rotinizarmos o processo. Quem sabe chegamos a três meses, incluindo pré e pós-produção (organização do acervo, resenhas, hangouts, etc)?
  • Participação nas decisões e transparência na definição de data, custos e gastos distribuem a responsabilidade pela realização do jogo;
  • As "cores" funcionam? Bem, não como equipes isoladas, autônomas e especializadas. O último larp demonstrou a importância do trabalho das equipes se estender da Produção para a Preparação. Grupos de costura, de jantares e de discussão das regras não precisam ser exclusivos de uma ou outra equipe. Elas podem ser geridos por algumas pessoas, mas podem e devem envolver todo o grupo. (A notação dos Créditos na ficha técnica já esboça esse tipo de reconhecimento).


Preparação
Regras, Movimentos, Combate, Costumes

Para o larp de 2013, esperávamos que os jogadores se preparassem lendo o Guia e acompanhando uma versão anterior deste blog. O erro dessa estratégia foi pressupor a adesão imediata dos participantes a um esquema desconhecido. Muitos só se dedicaram a entendê-lo minutos antes do início do jogo. Os conceitos das Profissões foram bem recebidos pelos Jogadores, que encontraram neles um norte para sua representação. Mas não é exagero dizer que o matriarcado, o sagrado, a floresta e outros conceitos importantes da ficção de Akitan passaram em brancas nuvens para a maioria.


Durante a revisão do Guia para 2014, a Azul se dividia quanto à necessidade e o proveito de se construir regras sociais. Metade dos integrantes acreditava que somente o combate precisava ser regulado e a parte social era passível de livre interpretação a partir do texto base para a ficção. A outra metade acreditava que, sem regulação, vários daqueles conceitos continuariam a ser ignorados pelos Jogadores. Mas, para além disso, todos agora tinham bastante claro que escrever regras não significava estabelecê-las com os Jogadores. Paralelo à redefinição do escopo e dos conceitos fundamentais do jogo, havia o problema de como socializar as regras do jogo. No Guia, a mecânica de combate se tornou mais fluída, tentamos dissuadir a perspectiva de "habilidades especiais" e introduzimos o conceito de que larp é movimento.




Praticamente não houveram encontros pré-larp em 2012-2013; em 2014 eles se mostraram fundamentais. O mais interessante: surgiram espontaneamente, inciativa de um grupo de jogadores. Contudo, não envolveram todos os participantes, alguns dos quais (incluindo os produtores) não residiam em Viçosa. A proposta dos encontros era reunir para fazer junto e discutir o jogo. O interesse do grupo pela arte de combate possibilitou alguns playtests e facilitou facilitou imensamente o desenrolar das cenas de luta no jogo desse ano. Em todo o caso, em 2013 as habilidades de profissão foram impressas em cartões e distribuídas aos Jogadores (o que fez falta este ano) e o combate foi ensinado por um Coadjuvante, dentro da ficção.

Nos dois anos a parte cultural de Akitan não foi "calibrada" em encontros pré-larp. Por isso a programação para 2014 previa um Oficina de Preparação na sexta à noite, após a chegada dos participantes ao local do evento. Atrasos, preguiça, fome, cansaço acumulado da produção e dificuldade de concentração minaram em parte a realização da oficina, que estava prevista da seguinte maneira (note-se que ela, primordialmente, trabalha sob a forma de workshop alguns dos movimentos descritos no Guia):


Na sexta à noite conseguimos definir algumas palavras para dizer coisas em Akitan (nuriá - o medo de estar sozinho na floresta; alar - seu propósito no mundo; vatrak - a sensação de estar fadado a jamais alcançar o seu propósito no mundo; hailin - o tio patriarca) e os epítetos dos Deuses (Danu - a Senhora do Princípio, a Musa dos Trovadores, a Mãe das Estrelas; Atar - o Provedor, o Rei dos Viajantes, a Chama Purificadora). Isso foi bem legal, embora não tenhamos avançado na formulação de orações. No sábado de manhã rolou um aquecimento de combate com todos os jogadores e a contação de histórias, que, infelizmente, rolou apenas com algumas pessoas, que aguardavam a hora de "entrar no jogo". Apesar disso, creio que a dinâmica fez muito pelo backstory dos personagens que conseguimos trabalhar (Johanes, Glin e Agnes) e promete ser uma ferramenta interessante no futuro, desde que compreendidas as características da narrativa possível de ser construída no e através dos larps de Akitan. O Arco Dramático, infelizmente, passou em branco.

"Workshop" expresso na entrada do sítio, março de 2013
Jogadores se preparando para contar histórias numa roda inspirada em "Archipelago", junho de 2014

O que podemos aprender com isso?
  • Comunicar os fundamentos técnicos e ficcionais do jogo é 90% do corpo-a-corpo;
  • Preparação importa e é uma extensão natural do processo de Produção;
  • Preparação é uma forma de "calibrar" a ficção e fazer que as regras rodem "por trás" dela;
  • Preparação pode ser mais ou menos ostensiva, mas precisa ser intensiva;
  • Regras sociais funcionam na forma de rituais cotidianos;
  • Treinamentos de combate ficam melhor dentro da ficção.


Os Larps
Estabelecendo Personagens, ONs e Offs, Trama e Fluxo de jogo, a narrativa possível

Os dois larps se estruturavam em três atos (jornada do herói style): chamado à aventura, transformação, confronto com o grande perigo. A descrição completa dos movimentos gerais de cada larp seria demasiado longa. Por isso, vou recortar rapidamente quatro momentos, o primeiro do piloto, os outros três deste ano, e ver o que podemos aprender com isso:
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Os Personagens eram os comuns da comitiva de um Lorde e seus quatro cavaleiros em jornada pela Fronteira. As instruções pré-larp reforçavam a presença dos cavaleiros e alguns jogadores chegaram a tomar por certo sua presença como Coadjuvantes no jogo. No dia do larp eles foram informados de que seu acampamento havia sido atacado misteriosamente na noite anterior e a comitiva havia se dispersado, sem sinal do Lorde e seus cavaleiros. Como a equipe Verde havia sido mantida em sigilo durante toda a fase de produção, a primeira evento do jogo foi o encontro com uma pessoa que eles nunca viram na vida, trajada como personagem ("Sir Bru") e agindo como tal, pedindo que eles se abaixassem por causa dos arqueiros nas montanhas. Nessa hora, mesmo descaracterizados, os produtores imitavam os movimentos dos Jogadores e evitavam fitar ou falar com eles (sombras diferentes das nórdicas). Os passos até o "Totem de Ossos" foram repletos de tensão, o que foi fundamental para o "maravilhamento" e valorização do cenário. Em filmes e séries, o diretor mostra sempre o melhor ângulo de todas as coisas, mas um larp como esse é 360º e exige outras formas de enquadramento.

Sir Bru e o enquadramento do Totem de Ossos, março 2013
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O larp começou com o encontro de três grupos de Personagens desconhecidos. Os derradeiros da comitiva, retornando ao local do Totem e descobrindo um grupo acampado ali, enquanto um Coadjuvante ("Guldur") chegava para reclamar o local sagrado, acompanhado de dois jogadores. Eu era esse Coadjuvante e minha diretriz era falar numa língua desconhecida e levar os personagens até o próximo Coadjuvante. Enquanto eu e os jogadores que me acompanhavam andávamos para chegar ao local do acampamento, eu fazia um esforço descomunal para grunhir meia dúzia de palavras como se fossem alguma coisa ("marbak"). Fiquei inseguro se estava sendo convincente ou não, e passados vários minutos nessa lida, decidi falar inglês. Eu ainda não sabia, mas havia perdido o meu palhaço.

Guldur à frente do grupo que teria de cruzar a floresta naquela tarde, junho 2014
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Quando os jogadores decidiram respirar fundo e voltar ao jogo naquela noite, nós nos afastamos e dissemos que aguardaríamos eles ascenderem as tochas no acampamento para recomeçarmos. Eu, Leonardo e o Tiago (cujo personagem ele havia deixado na floresta durante o dia) vestimos nossas máscaras e nos posicionamos do lado de fora do círculo das tochas. Era solstício de inverno (mesmo), Dia da Escuridão em Akitan, quando os mortos voltam a passear pela terra (mote do larp desse ano). Para nós três a dinâmica era simples: quem saísse do círculo era "pego" e tinha que usar uma máscara (6 ao total). Os Jogadores, porém, tinham que manter as tochas acesas e elas se apagavam muito rápido. Sustos à parte, seja no acampamento, seja na Tumba (um forno de carvão que capinamos e limpamos todinho para o jogo), ninguém saiu do círculo. Os Jogadores eram espertos e inventavam coisas. Sempre que saiam do acampamento, para buscar lenha ou cozinhar, jogavam punhados de sal pelo caminho "para afastar os espíritos". Deixávamos os artifícios funcionarem no início, mas como animais, os espíritos percebiam o que tinham e o que não tinham de temer. Foi quando ascendemos a pira de "fogo verde". Deslumbrados e receosos, uma fatia deles deixou o acampamento e foram "pegos". E então eu descobri que havia encontrado o meu mágico. Com Jogadores mascarados, a tensão escalou e o "pega" começou. De dez Personagens no acampamento, restavam apenas dois a uma certa hora. Foi quando, para sua surpresa...

Fogo espectral (efeitos práticos, sem photoshop)
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Depois do larp, todos voltaram para casa para seu primeiro banho em três dias e depois se encontraram na Távola, a luderia da cidade e nosso QG. Durante o debriefieng e avaliação, um dos jogadores nos contou que há anos fazia treinamento de clown. Era curioso o modo como ele dizia "o meu palhaço". Jogadores de RPG também dizem o "meu personagem", mas com frequência se referem a ele como "eu". Mas ele não falava em "eu palhaço". O palhaço é um outro. Na sua percepção, nos momentos em que mais se sentiu "dentro" do seu Personagem, não chegava a um centésimo de como era incorporar o seu palhaço. E ele traçou vários paralelos entre aquele tipo de preparação e como isso poderia melhorar nossa capacidade de sustentar a ficção uns para os outros durante o jogo: o desprendimento, a postura infantil de agir sempre chamando a atenção para si. Não é uma transposição direta, mas dá o que pensar. Na mesa redonda, todos colocaram suas criticas ao jogo, mas não apontaram dedos. Reconheceram as falhas e o potencial do que tinham vivido. "Eu não me lembro do corpo de vocês com as máscaras. Eu fecho os olhos e só vejo o monstro do Viagem de Chihiro". E ao final, todos voltaram à voz dos seus personagens para fazer Um Brinde aos Companheiros, que é como distribuímos os pontos de experiência pelo jogo.

Pergaminho do diebriefing: sugestões dos jogadores para os próximos jogos
(com caneta doada pelo Tiago Braga, do Oficina Larp)

O que podemos aprender com isso?
  • A oscilação entre dentro e fora da ficção não depende do cansaço ou da fome; depende apenas de assumir o compromisso com o desafio do jogo: sustentar a ficção por 24hs. Mas para isso, é preciso estar preparado;
  • Dar o enquadramento adequado aos eventos, evitando uma sobreposição desnecessária de ações ou um tumulto sem foco, indicando claramente o que está e o que não está no jogo é importante;
  • Dar enquadramento não significa uma estrutura "de trilho" para o desenrolar do larp;
  • Abolir o segredo no larp facilita a produção, mas aboli-lo completamente também tem seus custos: a perda da surpresa e do maravilhamento, as vezes desejáveis num larp de fantasia.


O Que Fazer Até o Próximo Larp?
A resposta para isso é simples

Jogar mais larps, outros larps. Mesmo que não seja para desenvolver a narrativa da série. Se bem entendidos, o RolePlayPoem é um formato muito interessante. Nele é possível desenvolver pequenos jogos de preparação e calibragem cultural. E se ainda assim desejarem jogos para avançar aquela narrativa, existe a Hospedaria da Ponte... Voltar às Fronteiras de Akitan talvez seja um problema, mas volta e meia aqueles personagens talvez tenham necessidade retomar àquele último lampejo de "civilização". Nem só de larps outdoor precisa ser a narrativa desta série. A narrativa de uma série de larps é condicionada por uma premissa, mas principalmente pelo que podemos fazer. Dentro disso, não há limites.